- Não foi difícil encontrar-te desta vez, parece-me que no teu íntimo estás sempre à espera que eu te encontre, agora até já ficas nas esquinas do meu prédio. – Tão solitário como sempre apareceu-me ali sem eu estar à procura, simplesmente apareceu.
- Mudaste a postura em relação a mim, e sem querer ser mal-educado, não te dei confiança para isso.
- Não me deste confiança, mas a questão é que sentias falta de falar com quem quer que fosse e para tua sorte ou não, calhou-te na rifa, eu. E agora nem vale a pena desconversar, nem falar sobre o mar, o tempo, a solidão, sobre profissões, se bem que acredito que o queiras fazer. Já percebi tudo Afonso, será que tu percebeste?
- O quê? Que ninguém me responde, que me tornei invisível aos olhos de todas as pessoas à minha volta, que no trabalho já ninguém me cumprimenta, já ninguém me dá qualquer informação. E afinal, o que estou aqui a fazer? Afinal, quem és tu, o que te torna tão especial para que me possas ver, para que me possas ouvir?
Se eu estava com vontade de o confrontar e ter todas as respostas, mudei de ideias, os papéis inverteram-se, Afonso estava a pôr-me contra a parede, era ele que estava a confrontar-me com algo que eu desconhecia totalmente e ele estava tão à vontade com isso, ele sabia que estava morto, que a sua vida terrena tinha-se esfumado entre os dedos no passado, num passado que eu nem sabia se era recente ou não. Já eu, não fazia a mais pequena ideia do que estava a acontecer comigo.
Deixei-o lá na esquina, ele ia aparecer novamente e eu naquele momento queria apenas esquecer tudo.
- Encontraste-o?! Vens nervosa! O que te disse? – Alaíde estava à minha espera.
- Ele sabe, não precisa que eu lhe diga que está a viver num plano que já não é o dele. Eu é que não sei nada. E ele percebeu isso, puxou-me para as perguntas que eu não queria fazer a mim própria. Será um dom?! Será que eu estou ligada a ele e por isso consigo vê-lo? Mas como? De outra vida? Eu nunca vi aquele homem até àquela noite no miradouro, e agora parece que ele me persegue.
- Ainda estou a pensar nisso, pode ser um dom, podem ter sido companheiros numa outra vida, e agora ele encontrou uma forma de comunicar contigo, podem ser tantas coisas, se pensarmos bem, desconhecemos o que se passa depois da partida terrena. Também pode querer dizer-te algo, se realmente tiverem sido companheiros, amantes noutra vida ele pode querer dizer-te que precisas ser feliz, porque eu se estou cá por baixo vejo que a tua vida está parada, ele, que está num plano diferente, provavelmente consegue ver melhor isso, talvez até consiga ouvir os teus pensamentos, sentir as tuas emoções.
O fim-de-semana terminou e voltei a estar só, eu e Afonso.
- Rafaela, não queiras fugir do que vês nem do que sentes. – Era a voz dele, agora já me aparecia em casa, com tanta naturalidade que esbarrava o real. Mas eu tenho a solução para isto, não falo, não ouço, não vejo.
- Rafaela, não te feches numa concha que podes ter dificuldade em abrir no futuro. As coisas acontecem por uma razão. Vais ter de descobrir a razão pela qual me consegues ver. Eu poderia dar-te a resposta mas esse é um caminho que tens de ser tu a percorrer.
- Não sei qual foi a parte que não percebeste que não te quero ouvir mais, eu estava bem na minha rotina de vida, estava descansada, não tinha problemas sobrenaturais a me chatear. É assim tão difícil perceber?
- Difícil não será, acho que é consensual, as pessoas não gostam de viver experiências sobrenaturais, e no teu caso, eu sou um estranho, para os devidos efeitos. Rafaela, tens de descobrir a vida.
Ele era um estranho, para os devidos efeitos, acho que a partir deste comentário ficou óbvio que não somos estranhos um ao outro, vidas passadas quem sabe.
- Vidas passadas? É daí que nos conhecemos, quer dizer, que tu me conheces, porque efectivamente, apagaram-me bem a memória, porque eu não faço ideia de quem sejas.
- Não sabes, mas sentiste a afinidade que sempre existiu entre nós. Lembras-te do miradouro, eu nem tinha falado contigo ainda e tu já estavas encantada, a ligação que temos com cada alma, não morre só porque nós morremos, como corpo, essa ligação fica para sempre, e saberás isso quando voltares.
Eu até conseguia entender tudo isso, até conseguia acreditar que fosse real, mas a sensação de desconforto continuava patente. Nós não somos programados para vivenciar experiências destas, para conversar com pessoas que já partiram.
- Se o contexto fosse diferente, tu eras o tipo de pessoa por quem eu provavelmente iria apaixonar-me, eu senti isso lá no miradouro. Talvez venha mesmo de outra vida, ou de várias vidas. Mas isto é tudo muito confuso.
- Não era suposto eu vir cá, eu vim por ti Rafaela. Vim porque tu planeaste uma vida inteira, e chegaste aqui a baixo e tens feito quase tudo ao contrário. Fizeste as escolhas erradas, e deixaste-te ficar numa solidão que não mereces. Deixaste de viver. Não voltaste por acaso, voltaste porque tinhas metas a cumprir, tinhas um propósito, alguns objectivos já conseguiste concretizar mas o principal ainda não.
- Isso quer dizer que ainda vou a tempo?
- Ouve o teu coração e começa a fazer as coisas que realmente te fazem bem, a vida não é só trabalho, é também prazer, é preciso saborear cada dia, porque depois levamos connosco todos esses dias, no momento da partida. Não te vou dizer quem fomos, nem o que somos ainda hoje, o que vamos ser para sempre, para uma eternidade que agora não consegues entender. Apenas quero que olhes para a tua vida e vivas.
Pela primeira vez, consegui vê-lo desaparecer, como uma pluma ao vento. Tão belo, tão iluminado. Afonso era o amor de toda a minha vida, de toda a minha eternidade.
Alguma coisa se passara pois Afonso deixou de aparecer.
A vida voltou ao mesmo, aos tempos de “casa-trabalho”.
Afonso, nunca mais o vi, mas a partir dele, percebi que nada acontece por acaso, e em mais nenhum momento deixei que a vida me passasse ao lado.
Não interessa como começamos a viver, nem quem nos abre os olhos, basta apenas começar a viver.
Afonso, estava a fazer com que eu voltasse a ser quem era, naquele dia no miradouro.
Dei comigo a pensar e a lamentar, por nesta vida não termos estado juntos, mas talvez, o plano era esse, conseguir sobreviver sem ele, e ainda assim, viver a vida de forma plena.
Deixei finalmente, que o meu sorriso voltasse e permiti-me abandonar de uma vez por todas, a solidão.
© Alexandra Carvalho