domingo, 14 de agosto de 2011

Oscilações e Desencontros (Final)

- Não foi difícil encontrar-te desta vez, parece-me que no teu íntimo estás sempre à espera que eu te encontre, agora até já ficas nas esquinas do meu prédio. – Tão solitário como sempre apareceu-me ali sem eu estar à procura, simplesmente apareceu.
- Mudaste a postura em relação a mim, e sem querer ser mal-educado, não te dei confiança para isso.
- Não me deste confiança, mas a questão é que sentias falta de falar com quem quer que fosse e para tua sorte ou não, calhou-te na rifa, eu. E agora nem vale a pena desconversar, nem falar sobre o mar, o tempo, a solidão, sobre profissões, se bem que acredito que o queiras fazer. Já percebi tudo Afonso, será que tu percebeste?
- O quê? Que ninguém me responde, que me tornei invisível aos olhos de todas as pessoas à minha volta, que no trabalho já ninguém me cumprimenta, já ninguém me dá qualquer informação. E afinal, o que estou aqui a fazer? Afinal, quem és tu, o que te torna tão especial para que me possas ver, para que me possas ouvir?
Se eu estava com vontade de o confrontar e ter todas as respostas, mudei de ideias, os papéis inverteram-se, Afonso estava a pôr-me contra a parede, era ele que estava a confrontar-me com algo que eu desconhecia totalmente e ele estava tão à vontade com isso, ele sabia que estava morto, que a sua vida terrena tinha-se esfumado entre os dedos no passado, num passado que eu nem sabia se era recente ou não. Já eu, não fazia a mais pequena ideia do que estava a acontecer comigo.
Deixei-o lá na esquina, ele ia aparecer novamente e eu naquele momento queria apenas esquecer tudo.
- Encontraste-o?! Vens nervosa! O que te disse? – Alaíde estava à minha espera.
- Ele sabe, não precisa que eu lhe diga que está a viver num plano que já não é o dele. Eu é que não sei nada. E ele percebeu isso, puxou-me para as perguntas que eu não queria fazer a mim própria. Será um dom?! Será que eu estou ligada a ele e por isso consigo vê-lo? Mas como? De outra vida? Eu nunca vi aquele homem até àquela noite no miradouro, e agora parece que ele me persegue.
- Ainda estou a pensar nisso, pode ser um dom, podem ter sido companheiros numa outra vida, e agora ele encontrou uma forma de comunicar contigo, podem ser tantas coisas, se pensarmos bem, desconhecemos o que se passa depois da partida terrena. Também pode querer dizer-te algo, se realmente tiverem sido companheiros, amantes noutra vida ele pode querer dizer-te que precisas ser feliz, porque eu se estou cá por baixo vejo que a tua vida está parada, ele, que está num plano diferente, provavelmente consegue ver melhor isso, talvez até consiga ouvir os teus pensamentos, sentir as tuas emoções.
O fim-de-semana terminou e voltei a estar só, eu e Afonso.
- Rafaela, não queiras fugir do que vês nem do que sentes. – Era a voz dele, agora já me aparecia em casa, com tanta naturalidade que esbarrava o real. Mas eu tenho a solução para isto, não falo, não ouço, não vejo.
- Rafaela, não te feches numa concha que podes ter dificuldade em abrir no futuro. As coisas acontecem por uma razão. Vais ter de descobrir a razão pela qual me consegues ver. Eu poderia dar-te a resposta mas esse é um caminho que tens de ser tu a percorrer.
- Não sei qual foi a parte que não percebeste que não te quero ouvir mais, eu estava bem na minha rotina de vida, estava descansada, não tinha problemas sobrenaturais a me chatear. É assim tão difícil perceber?
- Difícil não será, acho que é consensual, as pessoas não gostam de viver experiências sobrenaturais, e no teu caso, eu sou um estranho, para os devidos efeitos. Rafaela, tens de descobrir a vida.
Ele era um estranho, para os devidos efeitos, acho que a partir deste comentário ficou óbvio que não somos estranhos um ao outro, vidas passadas quem sabe.
- Vidas passadas? É daí que nos conhecemos, quer dizer, que tu me conheces, porque efectivamente, apagaram-me bem a memória, porque eu não faço ideia de quem sejas.
- Não sabes, mas sentiste a afinidade que sempre existiu entre nós. Lembras-te do miradouro, eu nem tinha falado contigo ainda e tu já estavas encantada, a ligação que temos com cada alma, não morre só porque nós morremos, como corpo, essa ligação fica para sempre, e saberás isso quando voltares.
Eu até conseguia entender tudo isso, até conseguia acreditar que fosse real, mas a sensação de desconforto continuava patente. Nós não somos programados para vivenciar experiências destas, para conversar com pessoas que já partiram.
- Se o contexto fosse diferente, tu eras o tipo de pessoa por quem eu provavelmente iria apaixonar-me, eu senti isso lá no miradouro. Talvez venha mesmo de outra vida, ou de várias vidas. Mas isto é tudo muito confuso.
- Não era suposto eu vir cá, eu vim por ti Rafaela. Vim porque tu planeaste uma vida inteira, e chegaste aqui a baixo e tens feito quase tudo ao contrário. Fizeste as escolhas erradas, e deixaste-te ficar numa solidão que não mereces. Deixaste de viver. Não voltaste por acaso, voltaste porque tinhas metas a cumprir, tinhas um propósito, alguns objectivos já conseguiste concretizar mas o principal ainda não.
- Isso quer dizer que ainda vou a tempo?
- Ouve o teu coração e começa a fazer as coisas que realmente te fazem bem, a vida não é só trabalho, é também prazer, é preciso saborear cada dia, porque depois levamos connosco todos esses dias, no momento da partida. Não te vou dizer quem fomos, nem o que somos ainda hoje, o que vamos ser para sempre, para uma eternidade que agora não consegues entender. Apenas quero que olhes para a tua vida e vivas.
Pela primeira vez, consegui vê-lo desaparecer, como uma pluma ao vento. Tão belo, tão iluminado. Afonso era o amor de toda a minha vida, de toda a minha eternidade.
Alguma coisa se passara pois Afonso deixou de aparecer.
A vida voltou ao mesmo, aos tempos de “casa-trabalho”.
Afonso, nunca mais o vi, mas a partir dele, percebi que nada acontece por acaso, e em mais nenhum momento deixei que a vida me passasse ao lado.
Não interessa como começamos a viver, nem quem nos abre os olhos, basta apenas começar a viver.
Afonso, estava a fazer com que eu voltasse a ser quem era, naquele dia no miradouro.
Dei comigo a pensar e a lamentar, por nesta vida não termos estado juntos, mas talvez, o plano era esse, conseguir sobreviver sem ele, e ainda assim, viver a vida de forma plena.
Deixei finalmente, que o meu sorriso voltasse e permiti-me abandonar de uma vez por todas, a solidão.

© Alexandra Carvalho




























Oscilações e Desencontros (Parte 5)

- Ficaste calada e estranha! Disse algo que não tivesses gostado? Mas não deixa de ser verdade Rafaela, tu quiseste voltar para casa de forma muito impetuosa, sem razão, eu não percebi, estavas ali alheia, estavas a olhar não sei para onde, para o nada talvez…
Para o nada, mais um factor a acrescentar na minha dúvida que eu tinha quase como certa. Afonso não era real, ou era mas não da forma como eu queria que fosse. Como era possível eu estar a ver alguém que não existia aos olhos dos outros, estava a ficar louca? Ou a minha desconfiança estava certa e Afonso já não estava vivo e andava aqui por baixo sem saber bem o que fazer, sem saber que a vida já tinha terminado a sua meta. Mas porquê eu? Se nunca tal me tinha acontecido, ou já e eu nunca me apercebi, quantas pessoas estranhas passam por nós todos os dias, principalmente nas cidades, quem nos garante que são todas reais, vivas?
- Estou cansada e aconteceu uma coisa que eu não te sei explicar, ou melhor, não quero explicar. Amanhã falaremos melhor sobre isto, até porque vou ter de falar, mais cedo ou mais tarde.
Alaíde já tinha percebido que o problema era grave. Amanhã era outro dia, precisava da noite para recuperar de mais uma perda, Afonso jamais poderia ser meu, jamais eu poderia continuar a me envolver, que confusão a vida estava agora a dar-me, com que intuito?!
As poucas horas em que estive deitada, tornaram-se longas, eternas, pareciam nunca mais passar e eu queria ver a luz do dia, precisava de clareza na minha mente e no meu espírito, ao mesmo tempo queria adormecer e acordar com uma realidade bem mais simples e apelativa, menos assustadora, pelo menos.
Como é habitual a Alaíde levantou-se cedo, coisa que já acontecia quando ainda vivia cá, o oposto de mim que não nego uma bela noite de sono até ao meio dia. Senti barulho na cozinha, deve pensar que ainda estou a dormir, não virá ao meu quarto, o que me agrada porque ainda estou a tentar encontrar as palavras certas, uma forma de dizer que não pareça tão surreal.
Enganei-me redondamente, do nada abriu-me a porta.
- Não vale a pena fingires que estás a dormir porque sei que não, estavas muito alterada ontem e quando estás assim não consegues dormir, ficas às voltas na cama tentando encontrar respostas para o que te está a acontecer.
- Se te disser que estou a ficar louca? Acho que é a forma mais simples de abordar a questão e depois digo-te porque acho que estou a enlouquecer.
- Uma Assistente Social a ficar louca, não seria de todo anormal, se trabalhasses com psiquiatria, ou com deficiências, visto que é muito difícil de conviver diariamente, mas no teu caso, que trabalhas com idosos, desculpa, não acredito muito nisso, prefiro a verdade.
- Aqui vai a verdade então, ontem disseste-me que não me viste a falar com ninguém, não é? Pois bem, o tal Afonso estava lá, e até me dirigiu algumas palavras, poucas, mas a questão é que falou comigo, e não sei porquê fiquei incomodada com a presença dele, quis vir embora por isso, depois ao chegarmos comentaste que não me tinhas visto a falar com ninguém e eu fiquei em choque, porque no fundo, eu já sentia que se passava alguma coisa, Afonso não está aqui como nós estamos, então a resposta para esta situação caricata vai ao encontro a duas vertentes apenas, a primeira, que eu possa estar a enlouquecer devido à solidão, sei lá, e criei esta personagem ou então a segunda…
- … ele já não vive, é uma alma que por aí anda, desencontrado da luz.
- Sim, agora se é a segunda vertente, eu não sei como lidar com isto, porque é que ele me está a aparecer tantas vezes, porque é que fala comigo? Ou melhor, porque é que eu consigo vê-lo e ninguém mais vê, agora sou médium e não me avisaram com antecedência?!
- As coisas não funcionam assim, não acredito que de repente tenhas ficado esquizofrénica e começaste a ver pessoas que só na tua mente existem, eu conheço-te há tempo suficiente para saber que isso não é verdade, por mais sozinha que possas estar, tu acabas por ter uma vida social até muito activa, és directora técnica do Lar de Idosos, comunicas com imensa gente do meio, tens funcionários à tua responsabilidade, não ias do nada ficar com uma doença mental assim tão grave e descontrolada. Até porque tu pões isso em causa, tu admites que existe qualquer coisa anormal nessa história e segundo sei um esquizofrénico jamais admitiria.
Ela tinha razão, mas até que ponto que eu, com a formação que tenho não teria facilidade em controlar as minhas palavras e não induzir os outros em erro? Porém, a verdade não passava pela doença mental, e eu sabia disso só não queria aceitar. Fugi a maior parte da minha vida desse lado oculto e transcendente das coisas, do mundo, e agora, sem mais nem menos esse lado tinha vindo ter comigo de forma completamente espontânea e eu deixei que me abordasse.
- Rafaela, acho que deves manter a calma, nós acreditamos que a vida continua depois da partida terrena, talvez tens um dom escondido que agora se manifestou para ser explorado. Faz o que tens a fazer, fala com ele, tenta perceber o que se passa, se ele sequer tem noção da sua situação.
Que eu precisava confrontá-lo, eu sabia, não me assustava vê-lo, não tinha nada a ver com aquela ideia que nos incutem desde cedo dos fantasmas, ele parecia tão vivo quanto eu. É verdade, estou com vontade de o encontrar de novo, embora agora não possa sentir o mesmo, a minha abordagem será outra, e disso tenho algum medo. Quando pensei ter encontrado alguém especial, esse alguém não poderá satisfazer os meus sentimentos e caprichos de ser humano vivo.

© Alexandra Carvalho

Oscilações e Desencontros (Parte 4)

Tudo o que eu precisava agora, ironias da minha irmã sobre a minha permanência na terrinha onde crescemos. Eu não queria ficar aqui, ela sabe bem disso, mas nem sempre o que queremos é o que podemos ter.
Quando reflectia sobre o curso superior que queria tirar, Serviço Social ainda era uma área profissional com saída na ilha da Madeira, claro que nessa altura, eu era uma miúda e quando acabei a licenciatura nem é preciso dizer que já tudo era diferente.
Se ficamos muito tempo parados, sem conseguir nada na nossa área de formação, quando finalmente aparece uma oportunidade agarramos de imediato, não interessa onde. Foi o que me aconteceu, e por ironia do destino a possibilidade surgiu precisamente na Ponta Delgada, uma terra que eu tantas vezes critiquei pela falta de desenvolvimento.
- Estás a exagerar, eu vivo cá mas também saio de vez em quando… admito, a minha vida não está muito interessante, parece que tudo o que eu aproveitei na universidade foi o meu expoente máximo de diversão e felicidade, aqui é tudo tão monótono, tu sabes.
Precisava imenso de sair, o simples facto de ver caras diferentes, dançar, era algo supremo. Estava tão condicionada à solidão que esses pequenos comportamentos de vida tinham-se tornado alheios à minha existência.
- Eu sei que sim, os meios pequenos limitam-nos muito e tu andas muito solitária, acabas por viver apenas para o trabalho, estás a esquecer da verdadeira Rafaela, aquela que adora sorrir, dançar e estar com os amigos. Vamos telefonar a alguém do Funchal e planeamos a noite, ou então, em memória dos velhos tempos saímos nós as duas apenas, sempre encontramos alguém conhecido…
É claro que uma saída à noite começa sempre na poncha, a nossa bebida típica e que toda a gente gosta, não tinha esquecido o sabor mas já há muito tempo que não frequentava bares e muito menos bebia poncha. Soube bem sair da rotina, ver gente desconhecida que nem olhavam nem deixavam de olhar para mim.
Mais uma vez o destino decidiu juntar-nos, Afonso estava lá, encostado a um recanto de uma parede, parecia sério.
- Agora já não nos esbarramos apenas na Ponta Delgada, pelos vistos pelo Funchal também – veio na minha direcção e disse-me aquelas palavras com um sorriso entusiasta, e eu estremeci apenas com isso, estava a apaixonar-me.
Tornou-se estranho estar no mesmo espaço que ele, a sua presença incomodava-me, o seu olhar oscilava entre o meu olhar e o das restantes pessoas que nos rodeavam. Alaíde manteve-se indiferente, não criticou mas também não apoiou aqueles olhares furtivos que estavam a acontecer entre nós. Apeteceu-me fugir dali. Os nossos planos nocturnos rapidamente mudaram e voltamos para casa.
Eu tinha a plena noção que estava a envolver-me demais, e deixar-me intimidar por alguém é sempre um processo complicado, que pode provocar danos, e eu já tinha tantos danos provocados de histórias passadas, mais um seria burrice. Por sorte, a minha irmã quis levar o carro, estava sem cabeça para isso, um turbilhão de sensações passava pela minha cabeça, senti o meu coração bater tão forte como se fosse saltar de dentro do meu corpo.
Por mais estranho que possa parecer, ela não falou, o caminho todo de retorno a casa, tornámo-nos mudas, para mim era normal, para ela não. Alaíde tem sempre algo a dizer, quanto mais não seja para ironizar, para desmistificar a importância das atitudes e das situações vividas, nela era normal não existir silêncio, porquê que continuava calada? Como se a presença de Afonso e a nossa troca de palavras não tivesse existido aos seus olhos.
- Rafaela, jamais no passado, terias voltado tão cedo para casa, sem motivo aparente, pelo menos para mim.
- No passado eu tinha uma idade diferente, mais jovem, menos preocupada, não sentia o peso das emoções como sinto agora, tornou-se complicado, difícil até, contornar tudo isso.
- Emoções?! Mas que emoções, o pouco tempo que lá estivemos eu não te vi falar com ninguém…
Nesse preciso momento, tudo fez sentido, eu não queria acreditar, mas isso justificaria o porquê de nunca o ter encontrado, o porquê de o achar mais velho e a sua aparência não mostrar isso…
Se antes tinha tomado decisões erradas, paixões instáveis que nada me trouxeram de bom, agora era a pior das decisões, a paixão mais instável que poderia acontecer. Afonso era de cá e ao mesmo tempo não, a sua imagem esfumava-se a cada momento, e surgia sempre que lhe apetecia, e surgia agora na minha vida. Eu precisava saber se era verdade, e ele iria responder, querendo ou não. Fiquei pálida, sem forças, o céu acabara de desabar e o chão simplesmente fugira dos meus pés. Pela primeira vez eu estava a vivenciar algo inédito e totalmente surreal.

© Alexandra Carvalho















Oscilações e Desencontros (Parte 3)

A minha irmã vem este fim-de-semana à Madeira, e estou eufórica com isso, pelas saudades e também pela agitação que esta visita irá provocar na minha vida tão monótona ultimamente.
A Alaíde é uma miúda especial, uma miúda já com 27 anos, mas para mim que a vi crescer, é como se ainda fosse muito novinha e ainda precisasse muito de mim. Temos uma diferença razoável de idade, 10 anos. Quando ela nasceu eu já era crescida, ou pelo menos, gostava de pensar assim, fiz questão de ajudar na sua evolução como ser humano, penso que consegui fazê-lo muito bem, ou não seria ela uma pessoa tão sensível e solidária.
As escolhas do ser humano dependem sempre de coisas diferentes, e no caso dela, o amor é que a fez decidir que caminho tomar, optou pelo Continente.
Esta distância não me agradava muito, a minha irmã era a minha principal companhia e a mais importante. No entanto, eu sentia-me feliz por ela, porque tinha tido a sorte de encontrar um amor que seria para a vida toda, uma pessoa que a completa a todos os níveis e que a faz feliz, isso é de facto o mais importante. É claro que ela também teve sorte, por ter arranjado um bom emprego lá, na sua área de formação, o que é cada vez mais complicado dado a crise financeira que Portugal tem vindo a atravessar.
Desta vez o namorado não vinha, era um fim-de-semana de irmãs, para conversarmos sobre as novidades, para desabafar sobre os altos e baixos das nossas vidas. Por um lado, estava contente com o facto de vir só ela, tinha tanta coisa para contar, tinha o Afonso agora a frequentar os meus dias, os meus pensamentos e alguns desejos.
Esta sensação era nova, uma pessoa diferente, que sem saber muito bem porquê, conseguiu cativar-me de uma forma mais suave, sublime. Não era a parte física que sobressaía, era tudo muito mais emotivo e sentimental. Seria mais um fracasso a caminho? Era um risco que eu precisava tomar.
- Já sei que se passa qualquer coisa, basta olhar para ti. Estás com aquele olhar de quem quer falar mas não sabe por onde começar.
Alaíde conhecia-me o suficiente para perceber através da minha expressão que vinham novidades a caminho. Eu sentia-me inibida para falar porque o Afonso transmitia algo ambíguo, e conhecendo a minha irmã como conheço, vai-me dizer na hora que tenho de fugir de outro filme amoroso.
- Conheci alguém, não no sentido amoroso. Encontrei-o casualmente, por duas vezes, trocámos algumas palavras, não é de cá. É de Trás-os-Montes, que coincidência tremenda, perguntou-me se eu conhecia, não lhe disse que sim... Chama-se Afonso, e antes que me perguntes a idade, não faço ideia, parece mais velho do que eu, e ao mesmo tempo, parecemos da mesma idade.
- Mas porquê? Porque tem cabelos brancos e tu não?
- É complicado explicar, se olhares para ele, sem o observares atentamente, és capaz de dizer que é pela minha idade, mas observando, há qualquer coisa no olhar, é contraditório com o físico dele. A alma é mais velha, o corpo é mais novo.
- Estás completamente louca, aposto que estás a passar muito tempo aqui, não tens socializado? O Funchal é bem perto, a civilização está ao teu alcance. Mas não te preocupes, porque vamos sair este fim-de-semana. Quem sabe não conheces alguém interessante e menos misterioso.

© Alexandra Carvalho










Oscilações e Desencontros (Parte 2)

Vi-me novamente na minha rotina aborrecida, os meus dias limitavam-se ao trabalho e à minha casa. Afinal sentia-me estranha na minha própria terra. Conhecia muita gente, vizinhos, conhecidos, pessoas com quem tinha conversas casuais na rua ou no café. Mas isso não me satisfazia. Tive vários amigos, aqueles com quem cresci, com quem brinquei em criança, e posteriormente os amigos feitos no meu tempo de universidade, no Continente, essa tinha sido a minha melhor época. Mas o tempo passa e cada um de nós foi atrás do caminho que acreditávamos trazer a nossa felicidade. Talvez para alguns trouxe, para outros nem tanto. Mantinha o contacto sempre, mas o facto de viver na ilha da Madeira, condicionava até a amizade. Ou porque não havia tempo de ir vê-los, ou porque a situação financeira também não permitia estes encontros, e isto, aplicava-se a mim e a eles.
Talvez porque me sentia só e os recentes relacionamentos amorosos tinham falhado totalmente, aquele encontro no miradouro trouxe algo de novo para os meus dias, comecei a ter vontade de o ver, de o encontrar na rua, por acaso, num dia qualquer. Mas isso não aconteceu, provavelmente não era de cá, não vivia perto, mas se assim fosse, porque é que ele me tinha dito que aquele miradouro era o seu refúgio? Já nada fazia sentido, e decidi não pensar mais, a vida continuava, mesmo sem ter qualquer graça.
Da mesma forma inesperada que o encontrei na primeira vez, voltei a encontrá-lo na segunda.
Mesmo à saída da minha casa, lá estava ele, sentado novamente, num dos bancos do pequeno jardim da freguesia. Senti um impulso forte e não resisti passar sem cumprimentar, ainda que não soubesse se ele relembraria do meu rosto.
- Boa noite – senti-me ridícula naquele momento, no entanto, já tinha falado.
- Não sabia que vivia aqui perto do jardim, este é outro dos locais por onde costumo andar – a sua voz continuava doce e suave, mas desta vez parecia estar mais confuso, mais solitário.
- Se este é um dos seus locais preferidos, confesso que nunca o vi por cá. Provavelmente, temos horários diferentes. Mas já agora que o encontro, no outro dia nem perguntei o seu nome, e se é de cá? É madeirense? Eu sou a Rafaela. – Pronto, decidi fazer um interrogatório, agora o homem não aparece mais para não voltar a ser incomodado.
- Se sou de cá, essa não deixa de ser uma pergunta interessante, ao tempo que ando por cá, que sim, já me considero daqui, mas na realidade nem sou madeirense. Sou de Trás-os-Montes, conhece? Sou de uma daquelas terreolas pequenas lá para cima, mas estudei economia no litoral, e acabei por vir parar à Madeira. Quando acabei o curso havia algumas vagas para a Câmara Municipal do Funchal e fiquei até hoje. Ah, e chamo-me Afonso.
Estava ali a ouvi-lo deliciada, ele falava das coisas de uma forma tão apaixonante, que aquele nem parecia ser um assunto tão banal. Eu conhecia Trás-os-Montes, aliás, fiz todo o meu percurso universitário lá, mas optei por não referir isso, pensei que ele pudesse achar coincidência a mais, que eu estaria a inventar só para termos algo em comum. Falamos durante vários minutos, longos minutos que eu desejava que durassem muito mais tempo. Isso era impossível, pelo menos naquele momento, tinha o trabalho a chamar-me, e logo eu, que sempre fui uma funcionária pontual, atrasar-me poderia significar muita coisa.
Não lhe fiz mais perguntas, já sabia que mais cedo ou mais tarde iria encontrá-lo, afinal, os lugares que eu frequento também eram frequentados por ele, numa terra tão pequena seria impossível não esbarrarmos outras vezes. Incomoda-me pensar sobre isso, eu vivo aqui há tanto tempo, como é que nunca o vi, se ele diz que costuma estar no jardim em frente à minha casa, será que estava tão envolvida nos meus dilemas e devaneios que este homem me tenha sido invisível?!

© Alexandra Carvalho








Oscilações e Desencontros (Parte 1)

Pela primeira vez passei por lá, e por desejo do destino ou não, ele estava lá, sentado, olhava interminavelmente o mar, numa solidão escondida, talvez dele próprio.
Aquela rua estreita que vai dar ao miradouro assustava-me um pouco, principalmente à noite, mesmo sendo uma freguesia pouco atribulada e movimentada, a escuridão perturbava aquele trajecto. Mas tinha passado o dia todo com uma vontade enorme de me encontrar com o mar, falar com ele, chorar todas as lágrimas que havia mantido nestes últimos tempos. Cheguei ao final do dia e não consegui controlar o desejo e fui, saí de casa disparada, e apenas levei comigo a chave. Era tudo tão perto.
Poderia ter olhado pela minha janela, o mar estava ali mesmo, mas sabia que naquele miradouro a sensação seria diferente, como se a ligação fosse mais profunda. Não sei explicar o porquê de nunca lá ter ido, vivo há tantos anos aqui, é estranho dizer a alguém que nunca lá fui. Penso que estava à espera do momento certo, e este era, sem dúvida, o momento certo.
Percorri a rua com passos calmos, pequenos, apetecia-me reflectir, talvez porque estava prestes a me despedir de recordações que me magoavam muito ainda, era hora de deitar fora o passado, e nenhuma outra companhia seria melhor do que o mar, aquela imensidão que poderia guardar todas as recordações do mundo, as boas e as más.
Pensei que não iria estar lá ninguém, àquela hora as pessoas deveriam estar em casa, a jantar, rodeadas dos familiares, dos amigos, das pessoas de que gostam, sim, porque não haviam muitas pessoas a viver sozinhas ali, a Ponta Delgada era propícia a casamentos.
Estava redondamente enganada, ele estava ali, a olhar para o mar da mesma forma que me apetecia olhar, parecia estar a despedir-se, naquele momento jamais imaginei de quem ou de quê.
Não queria interromper a sua conversa com as ondas que estavam cada vez mais fortes e mais altas. Mas não consegui deixar de olhar, havia raiva, havia solidão e medo naquele rosto, naquele olhar. Eu que achava ser a pessoa mais solitária e mais triste daquela terra, talvez não fosse, mas a desilusão tende a fazer com que dramatizemos mais as coisas, os sentimentos, as experiências e a própria vida.
Apesar do meu estado emocional naquela época, era impossível que este homem me passasse ao lado, tudo nele me fascinou. Tinha cabelos encaracolados, escuros, uma pele morena que atraía, não era muito alto, nem muito magro, mas isso talvez ainda me atraísse mais, nunca achei muita piada a homens demasiado esbeltos. Um perfeito estranho me cativara ao primeiro contacto num lugar que nunca tinha ido e à beira do meu mar. Isto significaria o quê?
O mar continuava agitado e o céu começava a ficar escuro, as nuvens carregadas, estava prestes a chover e eu ainda não tinha conseguido fazer o que queria, despedir-me do meu passado repleto de desilusões e perdas indesejadas. Foi nesse momento que ele falou, uma voz suave, doce e discreta, disse-me boa noite, esboçou um pequeno sorriso, e comentou que aquele miradouro era o seu refúgio mas parecia que o estado do tempo estava contra ele, teria que ir embora. Achei piada, sorri também, concordei acerca do tempo.
Finalmente estava sozinha, naquele miradouro pouco iluminado.
Uma retrospectiva de acontecimentos passou pela minha cabeça, foi tudo muito rápido, já caía a chuva ao de leve, e sem quase me dar de conta, senti-me mais livre, aquele peso da dor estava a ficar mais leve, e tudo isso, não porque fui falar com o mar e atirar fora as memórias, não, o encontro com aquele homem estranho acabara de mudar tudo.

© Alexandra Carvalho









terça-feira, 2 de agosto de 2011

De Passagem

Não sei aonde pertenço,

Deixei o tempo passar

E proibi-me de criar raízes

Por onde quer que tenha passado.

No meu coração desapegado

Guardei gentes e locais,

Mas não me deixei ficar em lado nenhum.

Que é feito de alguém

Que não sabe de onde é?

Que vida pode esperar

Um ser que não sabe para onde quer ir

Nem onde quer ficar?

Nasci num tempo

Que talvez tenha escolhido por engano;

Nasci numa terra

Que ainda não soube reconhecer,

E apenas as pessoas

Foram transparentes para a minha

Memória apagada.

Não sou de lado nenhum,

Afinal, estou aqui de passagem.